Várias pessoas (a começar pela Dilma) dizem que o Serra e o PSDB fogem do debate quando o assunto é comparar FHC com Lula. Especialmente no campo econômico, não há dúvidas: o Brasil cresceu muito mais durante o governo Lula que durante FHC. Isso significa que o governo Lula mandou muito melhor na gestão da economia? Minha intenção, neste texto, é ajudar quem busca informações para fazer uma comparação um pouco mais profunda que jogar um número contra o outro, sem analisar o contexto.
Primeiro, vou falar da inflação na história do Brasil, junto com os problemas que ela cria. Depois, falo do Plano Real, seus sucessos e vulnerabilidades. Depois, das crises pelas quais o Real passou no governo FHC, e como o governo Lula pegou a economia. Por fim, falo da economia no governo Lula. Vai ser tudo bem breve - cada um desses pontos pode facilmente ser um livro inteiro!
1) A InflaçãoInflação é quando os preços das coisas aumenta, e o dinheiro na sua carteira passa a comprar menos. Mas qual o problema disso?Primeiro, inflação alta e instável causa problemas de planejamento. Imagine que você tem que planejar suas férias. Ou que você é uma empresa e precisa planejar suas contas do ano todo (porque, afinal, você quer crescer!). Se você não sabe qual vai ser o preço das coisas no futuro, fica MUITO mais difícil planejar para longo prazo.Existe um outro problema, muito mais grave: no geral, em países pobres (como sempre foi o Brasil), alta inflação causa concentração de renda. Isso ocorre porque quem tem dinheiro consegue se planejar e proteger sua grana; quem é pobre não consegue. O dinheiro na carteira parra a valer menos a cada dia.Agora dêem uma olhada no gráfico de inflação anual do Brasil, calculado desde 1944 (IGP-DI: dados retirados do site da Fundação Getúlio Vargas):Não dá pra ver direito porque a inflação era muito alta (grotescamente alta, eu diria) de meados dos anos 80 até o Plano Real. Segue o mesmo gráfico, mas limitado a 50% ao ano de inflação (nos anos em que não aparece, a inflação era maior):Agora lembrem que o Brasil continua a ser o sexto país mais desigual do mundo, mesmo depois de ter melhorado um tanto nos últimos anos. Será que tem algo a ver?
Óbvio que o Brasil já era muito desigual em 1944, fruto da nossa história. Porém, de lá pra cá o Brasil cresceu pra caramba, se tornou um líder global, mas até bem pouco tempo atrás só aumentávamos a desigualdade. Claro que outros fatores explicam tanto quanto, ou mais, a desigualdade, a começar pela falha sistemática na educação pública de base. Ainda assim, é bem difícil acreditar que a inflação não tem sua parcela de culpa.
Em resumo: o Brasil cresceu bastante. Mas, até o Plano Real, tinha crescido num modelo concentrador de renda, com enorme exclusão social. Governos que tentaram propostas alternativas - bons exemplos são Getúlio e Jango, com seus aumentos do salário mínimo - não conseguiram unir suas propostas à estabilidade econômica, gerando mal-estar em toda a sociedade. Os resultados são bem conhecidos: para um, suicídio; para o outro, golpe militar.
Pra quem quiser checar porque eu digo que nosso modelo é menos concentrador a partir do Plano Real, clique aqui para ver o índice de Gini sobre os rendimentos, calculado pelo IBGE. Ainda que pouco, dá pra ver que a desigualdade tem decrescido consistentemente desde lá. Melhor: tem acelerado a queda nos últimos anos!
2) Combatendo a inflação: o Plano Real
Vou fazer uma confissão: depois de estudar um tantinho sobre história do Brasil, quando cheguei na parte do Plano Real me deu vontade de chorar. É muito emocionante! Depois de décadas de governos tentando maneiras e mais maneiras diferentes, depois de anos de hiper-inflação em que foram tentados vários planos que só pioraram a situação... Finalmente, uma equipe montou um plano certo e conseguiu fazer o governo segui-lo até o fim, por anos a fio, para matar de uma vez por todas a alta inflação.
Será que FHC juntou um grupo de ninjas que davam porrada em quem aumentasse os preços?
O Plano Real deu certo por vários motivos, a começar por juntar uma equipe com grande formação econômica. Os caras aproveitaram o fato de um monte de planos ter sido tentados antes pra entender: "por que eles não funcionaram?" A questão é que eles tinham que garantir uma série de coisas:
- Lembra daquela grana que o pobre perde quando tem muita inflação? A maior parte dessa grana vai pro governo, que a usa pra se sustentar (o chamado "imposto inflacionário"). A equipe do Plano Real sabia que o governo teria que fazer um controle de gastos; caso contrário, a inflação iria ressurgir na primeira oportunidade. Isso demandou uma série de reformas, como a criação da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e uma reforma da previdência.
- A equipe também sabia que precisava manter o dólar bem baratinho pra evitar mais inflação. Isso ficou ainda mais evidente depois da crise do México, em 1994: os caras tentaram, mas não conseguiram manter o dólar barato. Quando houve a desvalorização do Peso, junto com ela veio uma inflação fortíssima. A equipe de FHC precisava evitar esse risco.
- A equipe ainda tinha visto, no Plano Cruzado, que as pessoas começavam a comprar muito mais depois de uma estabilização dos preços. Muita gente querendo comprar é causa clássica de inflação. Para segurar esse lado, o governo precisou fazer o que se chama política monetária restritiva: em outras palavras, juros bem altos.
Tudo isso foi feito e o resultado vocês conhecem: o dragão da inflação foi derrotado! Porém, o governo teve que manter essa estratégia por anos a fio antes de ter a certeza que o problema estava encerrado. Afinal, vários dos planos anteriores tinham dado certo por um tempinho, mas voltavam depois.
Só que essas ações apresentavam um custo bem grande para o país:
- O câmbio supervalorizado (ou seja, dólar baratinho) tende a gerar mais importações e menos exportações. Isso tende a fazer o PIB crescer menos (fica mais barato comprar os bens de fora que produzir dentro).
- Mais importações que exportações gera o que chamamos de déficit na balança comercial. Esse déficit tem que ser financiado por gringos mandando dólares pro Brasil - por exemplo, comprando participação em empresas (inclusive em privatizações), ou comprando títulos do governo (que, lembrem-se, eram um ótimo investimento, já que os juros eram altos!). Porém, no dia em que os gringos não quisessem mais mandar a grana pra cá, a coisa poderia ficar sinistra!
- Os gringos compravam um monte de títulos do governo e os juros eram altos. Resultado disso? A dívida do Brasil aumentava, e o governo tinha que pagar UMA GRANA de juros pra investidores internacionais.
Essas coisas eram segredos? Não. Todos sabiam. Os custos eram altos, mas alguém, algum dia, tinha que pagar por eles. Acabar com décadas e décadas de governos tentando achar um “jeitinho brasileiro” de levar o país pra frente, mas sem resolver de vez os problemas estruturais. Só empurrando com a barriga.
Pra mim, deu certo pra caramba. Hoje o Brasil é um outro país, que consegue ter ao mesmo tempo governo democrático, crescimento econômico forte, baixa inflação e redução de desigualdade social. Mas vou te contar: piorou antes de ficar tudo bem!
3) Crises
Lá pelos idos de 1995, 1996, os economistas sabiam que o Brasil estava num jogo perigoso: se viesse uma crise, talvez não conseguíssemos manter o Real supervalorizado. No fundo, o governo sabia que a situação não era sustentável. Porém, ele não queria a desvalorização antes de ter a certeza que a inflação estava derrotada. E também, possivelmente, não queria fazer isso num momento que fosse ruim do ponto de vista eleitoral.
Mas a crise acabou vindo no fim de 1997, e começou a ficar difícil pagar as contas! Em 1997 veio a crise financeira asiática, e logo depois, em 1998, a crise russa. Quando os gringos começaram a perder dinheiro e ficaram com medo de investir em países emergentes, ficou complicado manter o dólar barato. O governo começou a queimar suas reservas, mas chega um ponto em que não dá mais. Também teve que aumentar os juros (pros gringos terem mais “recompensa” pra mandar a grana pra cá), e até pedir dinheiro emprestado pro FMI. Mas no início de 1999 não dava mais e houve a maxi-desvalorização do Real.
Felizmente, não houve um revival da inflação. Economistas atribuem isto a dois fatores. Primeiro, deu tempo pra economia brasileira “superar” os hábitos da inflação (a chamada desindexação da economia). Segundo, porque a economia tinha passado por uma fase de recessão: a atividade econômica estava baixa, o que por si só é um fator que leva a menor inflação. Se a desvalorização tivesse vindo antes, haveria chances de que ela trouxesse consigo o dragão.
Depois dessa crise e da desvalorização, o governo montou o esquema econômico que é seguido até hoje, cuja base é o tripé Câmbio Flutuante + Meta de inflação + Superávit Primário.
Porém, o Brasil acabou juntando uma penca de problemas: dívida, muitos juros pra pagar, reservas baixas... E aí, só pra sacanear, veio a crise da Argentina, em 2001, quando ela declarou moratória (calote!) dos seus títulos públicos. Agora imagine que você é um gringo que investe dinheiro em países emergentes. Ao ver que a Argentina deu calote, e que o Brasil tem um monte de dívidas, o que você ia fazer com os títulos públicos brasileiros que você tem na sua conta?
E se ainda descobrisse, logo depois, que um candidato que sempre defendeu o calote da dívida externa está com grandes chances de ganhar a eleição?
Investidor estrangeiro em pânico em 2002 (retirado daqui)
Nesse contexto, Lula escreveu uma Carta aos Brasileiros (que, pra quem não a conhece, era na verdade uma Carta ao Mercado Financeiro), falando que ele manteria o modelo econômico vigente, pagaria as dívidas, etc. Quando ele assumiu, cumpriu suas promessas: fez um ajuste fiscal (ou seja, controlou muito bem os gastos do governo, no início de seu governo), renovou o acordo com o FMI que tinha sido fechado no ano anterior, seguiu a receita econômica pós-1999... E o Brasil sobreviveu e reconquistou sua credibilidade!E foi no meio disso tudo que FHC ganhou a má-fama que hoje os institutos de pesquisa dizem que ele tem. O fato é que o PIB não cresceu muito no enfrentamento de toda essa inflação e crises. E, se as pessoas não estão ganhando mais e sentindo que estão melhorando, não tem como ficarem felizes com o governo! Associe a isso 17 anos de PT falando mal do sujeito, e dá pra entender o que passou pela cabeça dos marqueteiros do Serra.4) Economia LulaNão há muito mais pra falar da economia no governo Lula. A estrutura era a mesma. Depois de reconquistada a credibilidade, o país pôde aproveitar dos bons ventos da economia mundial - agora, associados a uma estrutura interna bem montada - para começar a armazenar reservas. Após superar as instabilidades, o Brasil viu um aumento do PIB maior e mais consistente, provavelmente reforçado por aumento dos gastos do governo e das transferências diretas (Bolsa Família).Quando a crise veio, os fundamentos do Brasil estavam sólidos, e a gestão da política econômica foi consistente. As reservas protegiam o país de qualquer ataque especulativo, como os sofridos em 1999 e 2002. A boa regulamentação do sistema financeiro (que não foi montada pelo governo Lula) mostrou-se bem eficaz: diversos problemas que aconteceram lá fora simplesmente não existiram aqui. E, por fim, o fato de o Brasil ter uma economia relativamente fechada (exportações/importações são uma parcela pequena do PIB) ajudou a limitar os efeitos externos.Mas vocês não acham que eu iria deixar a oportunidade de criticar um pouquinho, né? =)Assim como em outras áreas, a minha impressão - compartilhada por um monte de gente, acredito eu - é que o governo Lula perdeu oportunidades de levar o Brasil mais adiante. Se você acha que o Brasil já está bom do jeito que está, vai discordar de mim. Porém, se acha que ainda precisamos mudar muito, vai reconhecer que, em termos de reformas, e de mudança de direção, é difícil não ficar pelo menos um pouco desapontado com o governo Lula.Na área econômica, o país precisa ardentemente de uma reforma tributária que simplifique um dos sistemas mais complicados do mundo, e que facilite a criação de empresas. Precisava de mais eficiência no sistema judiciário, criando condições estruturais que estão associadas a maior crescimento econômico. Lula tinha aprovação popular astronômica, estabilidade econômica, e maioria no Congresso. Como explicar que, ainda assim, houve muito menos reformas com Lula que com FHC?O Brasil precisa de menos juros, que são dos maiores do mundo - se os juros fossem menores, as empresas poderiam investir e crescer mais, e o câmbio provavelmente estaria mais desvalorizado (o que também nos ajudaria a crescer). Pra isso, o governo precisaria ser mais eficiente: aprender a priorizar seus gastos, evitando aumentar custos necessários. Mas aí, como abrigar todos aqueles parentes do Sarney, amigos da Erenice, etc? Precisaria diminuir os subsídios bilionários (bi mesmo) que concede através do BNDES a empresas gigantes como a BR Foods (Sadia + Perdigão), Odebrecht, JBS, Votorantim etc. Tadinhas, são empresas frágeis que não conseguiriam competir sem a ajudinha do governo! E de onde viria a grana da campanha da Dilma?E precisaria de algum tipo de reforma pra melhorar a qualidade no ensino, garantindo o capital intelectual pro país chegar mais longe. Mas cadê as idéias? Cadê a prioridade de recursos pra educação?Pra mim, fica fácil decidir. Eu quero um governo propositivo, que faz reformas, que assume custos - ainda que impopulares - para atingir benefícios de longo prazo.
Notas póstumas (11/mar/2011): Onde falo de esforço fiscal no Real, menciono a LRF mesmo sabendo que ela só foi aprovada anos depois porque ela surgiu do mesmo contexto, tinha o mesmo objetivo e demorou bastante tempo para ser aprovada (a iniciativa veio de bem antes).
E, sobre se o governo Serra, em minha opinião, faria tais esforços: não sei. Achava que sim, conforme aproximou-se a eleição comecei a achar menos, mas ainda assim votei nele. Talvez, hoje, eu votaria na Marina, mas não sei - e esta questão tem tão pouca relevância prática que nem vale a pena pensar.